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Vozes que ajudaram a construir a saúde pública no Brasil

A historiadora Laurinda Rosa Maciel fala sobre o Acervo Oral da Fiocruz, seus usos na pesquisa e a importância de democratizar o acesso às memórias da ciência e da saúde no Brasil

Jacqueline Boechat

07 maio/2025

O site da Casa de Oswaldo Cruz conta agora com uma nova seção: o Acervo de História Oral. Fruto de décadas de trabalho contínuo de pesquisa, coleta e tratamento de entrevistas com protagonistas da ciência, da saúde e da vida institucional brasileira, o acervo reúne mais de quatro mil horas de depoimentos gravados desde os anos 1980 com cientistas, técnicos, gestores e outros personagens fundamentais na trajetória da saúde pública no país.

Esses relatos oferecem uma perspectiva única, sensível e aprofundada sobre experiências individuais e coletivas que marcaram políticas públicas, práticas científicas e processos institucionais. Ao registrar memórias pessoais e trajetórias profissionais, o acervo se consolida como uma fonte documental indispensável para a pesquisa histórica, a educação e a preservação da memória institucional.

Para apresentar esse valioso patrimônio e refletir sobre sua importância, conversamos com a historiadora Laurinda Rosa Maciel, pesquisadora do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz e responsável pelo acervo. Na entrevista a seguir, Laurinda revisita os projetos pioneiros de história oral na instituição, discute os desafios atuais para a preservação e o acesso aos registros, e destaca o potencial crítico, afetivo e formativo desses depoimentos.

Em um cenário marcado por desinformação e tentativas de apagamento histórico, o acesso público a essas memórias torna-se ainda mais relevante, funcionando como uma ferramenta de democratização do conhecimento e de valorização da história social da ciência e da saúde no Brasil.

Quais foram os primeiros projetos que deram origem aos registros orais hoje preservados?

Os primeiros projetos de história oral foram o Memória de Manguinhos e o Memória da Assistência Médica e da Previdência Social no Brasil, realizados entre 1986 e 1989, e entre 1986 e 1988, respectivamente. Eles nasceram praticamente com a criação da COC e podem ser considerados como fundadores das ações de história oral na nossa unidade.

Que tipo de metodologia foram utilizadas na coleta e curadoria desses depoimentos?

Entrevistas de história oral, que iniciavam com a apresentação dos depoentes, que falam um pouco de si e de sua trajetória pessoal. A partir daí, as questões eram direcionadas para o objetivo de cada um dos projetos. No caso do Memória de Manguinhos, de modo amplo, o objetivo era a recuperação da história do Instituto Oswaldo Cruz, junto com outros produtos, como livros e outros escritos. Já na Memória da Previdência, o objetivo foi narrar a história das políticas de saúde e previdência no Brasil de maneira geral, começando com o Instituto de Aposentadorias e Pensões até as discussões que levaram à criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Os dois projetos tiveram mais de 300 horas de gravação de entrevistas cada um, o que caracteriza sua robustez e ousadia para o momento. Atualmente os projetos são normalmente mais curtos, mas não menos importantes.

De que maneira o acervo oral da Fiocruz contribui para a construção da história das ciências e da saúde no Brasil?

O acervo da Fiocruz traz um aspecto bem original no que se refere às fontes históricas para se estudar e analisar a ciência e a saúde no Brasil, já que foi construído a partir das falas dos depoentes escolhidos para participar dos projetos de pesquisa que são realizados, considerando sua temática mais específica.

Como ele se diferencia de outras fontes documentais mais tradicionais, como arquivos escritos ou iconográficos?

Acredito que a voz, a narração, a conversa que essas entrevistas trazem são aspectos bem distintos de fontes de pesquisa como documentos escritos, iconográficos ou de outra natureza pela singularidade de se poder acompanhar o relato de alguém que viveu determinada ação, participou de algum fato em particular ou até mesmo foi afetado por ele de outras formas. Os projetos mostram aspectos como a elaboração de políticas de saúde, mas também seus reflexos sociais.

Que aspectos singulares podemos apontar nos registros orais da Casa de Oswaldo Cruz?

Acredito que os depoimentos trazem aspectos diferenciados porque existe na entrevista uma outra forma de se posicionar ou debater determinadas questões que não necessariamente estarão presentes em um texto mais acadêmico ou formal, como um artigo científico ou relatório de pesquisa, por exemplo. Há passagens engraçadas, curiosas e, sobretudo, há o espaço de troca cuja relação de confiança foi estabelecida, muito comumente desde o primeiro contato com o entrevistado, o convite para participação, até a gravação da entrevista.

Quais elementos afetivos e subjetivos emergem nos relatos e por que são relevantes para a pesquisa histórica?

O que considero muito interessante é percebermos a dimensão humana de alguns cientistas. Por exemplo, há entrevistas com figuras muito importantes da pesquisa laboratorial em Manguinhos, que acompanharam grandes mudanças no campo da ciência e falam sobre isso em documentos, livros ou outros textos, mas, ali, no meio da conversa, surge uma história engraçada, uma passagem curiosa, um trabalho de campo mais difícil, enfim, aparecem esses aspectos das pessoas que trabalham e fazem ciência. Não são todas, obviamente, mas alguns depoentes aproveitam o estar à vontade e contam acontecimentos muito peculiares que certamente não teriam coragem de escrever em um relatório ou artigo científico. Há várias entrevistas muito interessantes onde figuras expoentes da ciência contam casos engraçados ou desnudam acontecimentos dos quais foram personagens de uma forma diferente, e você fica pensando “Puxa, mas o Dr. Herman Lent, o Dr. Deane, ou quaisquer outros, sempre me pareceram tão sérios, mas também sabem rir de uma piada ou situação engraçada”, ou seja, são pessoas como nós, de certo modo. Acredito que possa haver uma identificação, até.

De que forma o acervo oral revela diferentes versões e perspectivas sobre as trajetórias institucionais da Fiocruz?

Há depoimentos de muitos pesquisadores que acompanharam mudanças institucionais, avanços científicos, modernização de maquinaria de laboratório, surgimento de associações ou entidades de classe que podem ser encontrados em documentos mais tradicionais, mas, por vezes não com a riqueza de detalhes ou com aspectos mais curiosos que as entrevistas podem ter. E penso que se ter a oportunidade de registrar a voz, ou a voz e imagem, como atualmente tem sido feito com mais frequência, pode eternizar um aspecto tão particular que é justamente a entonação da voz, o exercício da memória ou até mesmo a lembrança de fatos vistos atualmente de outra forma por estes depoentes.

Como o acervo oral contribui para a construção da identidade dos atores sociais envolvidos com a ciência e a saúde no Brasil?

Pode oferecer uma outra visão do significado de fazer ciência, do estar em laboratório, de participar de uma política de saúde, ou como gestor ou como mentor, coordenador. Contribui também para se ter acesso a determinados aspectos que não necessariamente eu vou encontrar em outro tipo de fonte histórica, em outros documentos, mas não significa que a entrevista vá “tapar um buraco”, já que ela não é complementar, mas encerra-se em si. A história oral é uma prática que constrói fontes documentais e cujas entrevistas podem ser vistas, no meu entender, como uma construção colaborativa entre entrevistado e entrevistador. Houve críticas em determinado momento a respeito de sua parcialidade, mas atualmente essas questões não fazem mais sentido, pois, no meu entender, parcialidade há também ao se elaborar um artigo, uma matéria de jornal ou uma fotografia; há sempre uma intenção do sujeito que registra o fato ou a ação e isso não significa que é menos importante ou repleto de parcialidade, apenas.

Como pesquisadores, estudantes e o público em geral podem acessar esses documentos?

Os depoimentos, em sua ampla maioria, possuem transcrição, que pode ser consultada na Base Arch (https://basearch.coc.fiocruz.br/) e o acesso aos depoimentos gravados, pela Sala de Consulta (dad.consulta@fiocruz.br). Há uma parte pequena de depoimentos audiovisuais gerados com os projetos mais contemporâneos, que possuem arquivos de áudio e imagem; igualmente, podem ser acessados pela Sala de Consulta, já que nem todos nesta categoria possuem transcrição.

Qual é a importância de democratizar o acesso a essas memórias em tempos de crise de desinformação?

Acho fundamental, pois somos uma instituição pública que atende ao público e compartilhar e oferecer acesso fácil e descomplicado a este acervo é muito importante para mostrar a informação em “estado bruto”, podemos dizer, já que oferecemos a fonte de pesquisa e as conclusões ou direcionamentos serão sempre de quem as consulta. Poder disseminar a informação de maneira rápida e segura é fundamental nestes tempos de desinformação.

Quais são os desafios atuais para a preservação e ampliação do acervo?

Os projetos de história oral têm sido menos frequentes atualmente e, no meu entender, esse dado guarda relação com o tempo que eles exigem para sua concretização. Precisamos de tempo para elaborar o projeto e pensar em suas principais questões, os depoentes a serem ouvidos, submetê-lo ao comitê de ética em pesquisa e, efetivamente, realizar as entrevistas; depois precisamos coordenar as transcrições e conferi-las, colocar o material no mundo… isso pode levar anos a depender do tamanho da equipe e do número de entrevistas realizadas. Até os anos 1990, percebo um diferencial no nosso acervo que são projetos amplos, com entrevistas, por vezes, de mais de 20 horas de duração, até, por depoente. A partir dos anos 2000, há uma mudança nos projetos que dizem respeito especialmente à sua duração mesmo. Neste tempo, igualmente, sabemos que houve mudanças nos critérios de avaliação das agências de fomento para a concessão de bolsas ou auxílios; o critério da produção hoje é fundamental e penso que história oral não se encaixa muito nessa forma mais veloz de pesquisa, pois seus resultados demoram a aparecer.