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Luísa Façanha
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Apesar do discurso de inclusão, lógica colonial ainda permeia políticas públicas voltadas aos povos indígenas

Tese do PPGHCS analisa programas instituídos em territórios Kaingang, na região Sul

Karine Rodrigues

26 set/2025

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Etnia com o terceiro maior número de indígenas no país, os Kaingang foram alvo de iniciativas inéditas para a promoção do desenvolvimento rural, no período de 1999 a 2009, em dois de seus territórios situados na região Sul. Financiados pelo Banco Mundial e conduzidos pelos governos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, os programas propunham uma gestão descentralizada e participativa e ações que visavam incrementar a renda, promover o manejo sustentável e fortalecer as cadeias produtivas.   

Até que ponto essas políticas públicas, pioneiras em territórios indígenas, respeitaram a autonomia, os saberes e as práticas dos povos originários? A historiadora Andreza Bazzi buscou a resposta durante o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Em sua análise, conclui que, apesar formulados com a intenção de promoverem inclusão e participação, os programas ratificaram hierarquias e exclusões, pois se efetivaram com base na pretensa universalidade da ciência moderna, reafirmando assimetrias em relação aos saberes dos povos originários. 

Andreza investigou o impacto das políticas de etnodesenvolvimento em territórios Kaingang, com atenção especial às ações de assistência técnica e extensão rural. O estudo se concentrou em dois programas estaduais implementados nas maiores terras indígenas de cada estado: Guarita, no Rio Grande do Sul, e Xapecó, em Santa Catarina. Ambas careciam de políticas públicas e se encontravam em condições sociais precárias. 

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Casa na Terra Indígena Guarita. Documento cedido por Osório Lucchese, coordenador do Programa RS Rural. Maio de 2004.

Ao centralizar o fornecimento de insumos e equipamentos como motor do desenvolvimento, o programa reiterou uma lógica de intervenção baseada na transferência de tecnologias externas, muitas vezes dissociadas dos modos próprios de organização do trabalho e da diversidade dos saberes locais”, escreve a historiadora, que, durante o trabalho de campo, contou com a companhia das duas filhas adolescentes. 

O outro programa analisado, o Microbacias 2 (2002-2009), foi realizado na Terra Indígena Xapecó, onde, atualmente, mais de 70% do território é ocupado pela produção agrícola. Depois de sofrer o impacto da exploração desenfreada de madeira, os Kaingang passaram a vivenciar as consequências das monoculturas de soja e de milho. Ainda que o programa tenha sido reconhecido pelas lideranças locais como oportunidade para ampliar a infraestrutura local, o acesso a serviços e a participação social, Andreza enfatiza que o diálogo foi insuficiente para a compreensão “das formas indígenas de conceber território, economia e bem-viver”. 

Em sua análise, a historiadora conseguiu detectar avanços pontuais na ampliação de renda e infraestrutura. Além disso, por serem territórios caracterizados por precariedades extremas, as políticas públicas investigadas, em geral, foram bem avaliadas.  No entanto, “mesmo quando bem-intencionadas, tais iniciativas tendem a reproduzir uma matriz desenvolvimentista que persiste em subordinar os modos de existência indígenas a uma racionalidade funcional ao capital e ao agronegócio, promovendo um modelo de sustentabilidade restrito e normativo”, escreve a historiadora, que constatou formação insuficiente de técnicos em contextos interculturais, falta de diálogo com as práticas tradicionais e a descontinuidade política que limitaram a autonomia indígena. 

Monoculturas e uso de agrotóxicos comprometem ecossistemas e tradição indígena  

As atividades de monocultura, por exemplo, embora possam gerar benefícios econômicos, produzem tensões relacionadas à conservação da biodiversidade e à manutenção dos modos de vida tradicionais, explica Andreza. A introdução intensiva de práticas agrícolas convencionais, como monoculturas, e o uso sistemático de agrotóxicos, “compromete os vínculos ecossistêmicos e desestrutura as bases da autonomia alimentar e política.

Reconhecer essa pluralidade de mundos – e não apenas integrar os povos indígenas ao mundo dominante – é o desafio ético e político que se impõe às políticas públicas voltadas para esses territórios

Andreza Bazzi

Historiadora

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Andreza e Brasília: pesquisa de campo

Segundo ela, existe uma burocratização que acaba impedindo o acesso dos indígenas a determinados recursos e políticas públicas. Na tese, ela demonstra que há um “ciclo de descontinuidade político-burocrático”, por meio do qual as políticas públicas iniciam um determinado governo, mas são deixadas de lado quando há mudança na gestão.  

“As políticas públicas não são pensadas para incluir a diversidade de pensamento”, avalia a historiadora, que, além de evidenciar as contradições dos programas investigados, aponta caminhos ao propor que iniciativas voltadas aos povos indígenas sejam baseadas no que ela chama de etnodesenvolvimento cosmo-territorial, no qual o território, como espaço de vida e ancestralidade, ocupa um papel central. É uma abordagem que reconhece e valoriza as práticas indígenas, amplia a participação dos povos originários nas decisões e considera a justiça territorial como um elemento essencial para a construção de políticas que sejam, de fato, interculturais. 

“Incluir mundos indígenas é desafio ético e político” 

Criada em uma família que uniu descendência europeia e indígena, desde cedo Andreza acompanhou, dentro de casa, as tensões entre brancos e não-brancos. “Cresci vivenciando um pouco das contradições relacionadas à minha avó paterna, que nasceu em Território Indígena Nonoai, e a família materna de eurodescendentes”, conta ela, que, desenvolve pesquisa sobre a história indígena desde a graduação. Já investigou as manifestações culturais na Terra Indígena Toldo Chimbangue e o protagonismo feminino na luta pela terra no mesmo território. 

Ainda sobre as políticas públicas, a historiadora, que foi orientanda no doutorado por Rômulo de Paula Andrade, considera que a cultura estatal naturaliza a superioridade do conhecimento técnico-científico e deixa de lado saberes tradicionais e as cosmovisões indígenas, que são especialmente válidos em relação ao trato com o meio ambiente.  

Por fim, Andreza chama atenção para a importância da valorização do conhecimento dos povos tradicionais e de como é necessário ter mais indígenas nos bancos universitários. “Ao negar a legitimidade dos saberes indígenas e suprimir as vozes locais nos processos decisórios, sustenta-se a colonialidade do saber, mesmo em projetos que se pretendem inclusivos”, escreve, observando que a precariedade em territórios indígenas deve ser vista não só pela ótica da insuficiência material a ser superada por meio de programas pontuais, mas como consequência de um sistema histórico que nega a possibilidade de existência de múltiplos mundos.   

“Reconhecer essa pluralidade de mundos – e não apenas integrar os povos indígenas ao mundo dominante – é o desafio ético e político que se impõe às políticas públicas voltadas para esses territórios”, conclui.