Em seu livro A eugenia ontem e hoje, o historiador Robert Wegner, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), argumenta que a eugenia não desapareceu com a condenação do nazismo. Segundo ele, a lógica eugênica persiste até hoje, manifestando-se em discursos e práticas políticas contemporâneas, como na extrema-direita, mesmo sem o uso explícito do termo.
Em entrevista ao site da Casa, Wegner exemplifica como essas ideias seguem operando hoje por meio de mecanismos de exclusão, controle e hierarquização de grupos humanos. Ele retoma as origens da eugenia no século 19, formulada por Francis Galton como uma “ciência” voltada à melhoria biológica das populações, sua disseminação no contexto do imperialismo europeu e as particularidades do movimento eugênico brasileiro. O historiador também questiona o mito da democracia racial no país e analisa como o pensamento eugênico se transformou após a Segunda Guerra Mundial.
Para Wegner, o Sistema Único de Saúde (SUS) representa um exemplo concreto de política antieugênica, por afirmar o direito universal à vida e à saúde, independentemente de condições econômicas, biológicas ou sociais.
Como você define o que é eugenia e o que torna essa uma questão ainda atual?
Algo que atravessa os movimentos eugênicos é o tema do melhoramento das populações humanas em termos biológicos. Quando falamos em melhoramento, estamos afirmando que existem seres humanos ou grupos humanos melhores do que outros. A eugenia, portanto, adota uma lógica intrínseca de diferenciação e hierarquização. Discutir a eugenia e sua história é, assim, uma ferramenta crítica contra lógicas hierarquizadoras como o racismo, a misoginia, o capacitismo e a transfobia. A eugenia sempre carregou essa ideia de que determinados corpos, raças, gêneros e sexualidades são superiores a outros: que os homens são melhores que as mulheres; as pessoas sem deficiência seriam melhores que as pessoas com deficiência; os heterossexuais seriam melhores que os não heterossexuais e assim por diante.
O título do livro sugere uma continuidade entre passado e presente — o que permanece da eugenia de “ontem” nas práticas e discursos de “hoje”? Você poderia citar casos concretos, de como o pensamento e políticas eugênicas continuam se manifestando?
Sempre que há hierarquização de grupos, mesmo que de forma disfarçada, há ideias e práticas eugenistas em curso. O que diferencia os movimentos da extrema-direita, no Brasil e no mundo, é a adoção dessa lógica, sem disfarces.
Um exemplo brasileiro ocorreu em fevereiro de 2022, quando uma cratera se abriu em uma obra do metrô de São Paulo e um deputado sugeriu que o acidente foi causado pelas políticas de inclusão da empresa responsável, que promovia a contratação de mulheres. Ele associou a falha à uma engenheira à frente da obra, adotando um discurso claramente misógino, baseado na ideia de que homens seriam mais capacitados — uma lógica que pode ser relacionada à eugenia.
Outro exemplo recente é a defesa da pauta pró-natalista por líderes da extrema-direita, como o bilionário naturalizado estadunidense Elon Musk. Ele tem promovido a ideia de que pessoas brancas nos Estados Unidos e na Europa deveriam se reproduzir mais, uma vez que as populações africanas e latino-americanas nesses países teriam taxas de natalidade maiores. Essa lógica retoma diretamente a eugenia do início do século 20, que defendia o incentivo à reprodução dos considerados mais “aptos”. Então, esse é um livro de luta política.

❝ A eugenia se articulou às disputas econômicas entre nações, traduzindo os ideais capitalistas de produtividade em lutas biológicas: quanto mais saudável e forte a população, mais produtiva ela seria.❞
Robert Wegner
historiador
O pensamento eugênico surgiu entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20. Quais elementos marcaram esse contexto? Qual foi o papel do imperialismo e do colonialismo nesse processo?
A partir da década de 1860, autores como o cientista britânico Francis Galton (1822-1911) formularam a eugenia como uma ciência aplicada, voltada à administração biológica das populações e à inspiração de legislações migratórias e sociais. Em 1883, Galton cunhou o termo “eugenia”, a partir do grego, que seria a ciência do “bem-nascido”. Essa lógica de que as populações precisam melhorar biologicamente é algo que vai se espalhando a partir do final do século 19, época dos grandes impérios, das colônias, da partilha da África pelas grandes potências imperiais.
Nesse cenário, a eugenia se articulou às disputas econômicas entre nações, traduzindo os ideais capitalistas de produtividade em lutas biológicas: quanto mais saudável e forte a população, mais produtiva ela seria. Essa perspectiva levou à defesa de políticas eugenistas positivas e negativas. A positiva buscava incentivar a reprodução dos considerados mais aptos, enquanto a negativa pretendia restringir a dos menos aptos — categorias muitas vezes definidas com base em classe, deficiência ou raça.
Sobre o movimento eugênico brasileiro, o que houve de específico nesse pensamento no Brasil? Por que o livro questiona a chamada “democracia racial” no país?
Houve divergências entre correntes eugenistas em diferentes países. No Brasil e na América Latina, marcados pela miscigenação, consolidou-se desde o século 19 a ideia da mistura racial como traço nacional. Ao contrário da eugenia norte-americana ou alemã, que pregavam a pureza racial, a brasileira valorizava a mistura — o que levou à noção de uma eugenia mais leve. A ideia de que a população miscigenada seria superior à população negra, no entanto, revelava a lógica excludente embutida nessa proposta.
Essa valorização da miscigenação está diretamente conectada à construção da noção de democracia racial, especialmente a partir da publicação de Casa-Grande & Senzala, do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), em 1933. Embora o termo não esteja presente na obra de Freyre, ganhou força nas décadas de 1940 e 1950 e passou a compor uma imagem oficial do Brasil como uma sociedade harmônica e sem racismo. A socióloga brasileira Lélia Gonzalez (1935-1984), nos anos 1970 e 1980, criticou essa concepção. Em seu texto Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1983), afirmou que não se pode pensar o racismo sem pensar no sexismo, e mostrou como a miscigenação no Brasil se deu por meio do domínio do homem branco sobre mulheres negras e indígenas. A figura da mulata sexualizada e da empregada doméstica negra exemplificam essa dominação estrutural. Pensar a democracia racial apenas do ponto de vista racial apaga essa dimensão patriarcal e violenta da miscigenação.
Em geral, no Brasil, a proposta de “melhorar” biologicamente a população passava pelo combate aos chamados venenos raciais, como o álcool e a sífilis, associados à degeneração da raça. Essa eugenia, chamada de preventiva, articulava-se com movimentos sanitaristas e higienistas, defendendo melhores condições de vida, saúde e educação como caminhos para o aperfeiçoamento da população. Apesar das especificidades do movimento eugenista no Brasil — como a presença de ideias neolamarquistas e a ênfase em políticas de saúde e higiene —, tratou-se também de um projeto excludente e controlador. Muitos eugenistas chegaram a propor a esterilização de pessoas consideradas inferiores, especialmente em hospitais psiquiátricos, mas essa política foi barrada pela Igreja Católica, que, ainda assim, não impediu práticas como o internamento compulsório dessas populações. Por isso, embora distinta da eugenia anglo-saxã, a versão brasileira também se baseava na exclusão, na hierarquização e na crença de que há seres humanos superiores a outros.
❝ Ao contrário da eugenia norte-americana ou alemã, que pregavam a pureza racial, a brasileira valorizava a mistura — o que levou à noção de uma eugenia mais leve. ❞
Robert Wegner
historiador

A eugenia ficou fortemente associada ao nazismo. Como esse pensamento sobreviveu à condenação do regime nazista? Quais caminhos permitiram que ideias e práticas eugênicas persistissem após a Segunda Guerra Mundial?
Por muito tempo, acreditou-se que a condenação do nazismo teria encerrado a eugenia, especialmente após os julgamentos de Nuremberg, em 1946. No entanto, apenas médicos ligados diretamente aos campos de concentração foram julgados, deixando de fora muitos envolvidos com esterilização e eutanásia que atuavam nas instituições de pesquisa, mas não nos campos. Isso evidencia os limites da crítica à eugenia naquele período. Mesmo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), criada depois como símbolo do combate ao racismo, manteve traços dessa lógica: seu primeiro diretor, o biólogo e filósofo Julian Huxley (1887-1975), propunha uma eugenia “purificada” do racismo, mas ainda defendia o controle reprodutivo de pessoas com doenças hereditárias ou debilidades mentais.
Essa visão mostra que, mesmo após a Segunda Guerra, não houve ruptura com a eugenia. Historiadores, como Marisa Miranda, demonstraram que, na Argentina, associações e cursos com o nome de eugenia seguiram ativos entre as décadas de 1950 e 1970. A partir dos anos 1960, políticas populacionais promovidas por organismos internacionais e agências norte-americanas incentivaram o controle de natalidade no Terceiro Mundo, alegando que a reprodução das populações pobres compromete o crescimento econômico. No Brasil, isso resultou na esterilização de mulheres pobres, negras e de regiões desfavorecidas entre as décadas de 1960 e 1980. Uma CPMI, nos anos 1990, investigou essas práticas e confirmou esse perfil de vítimas. Embora o termo “eugenia” não fosse usado, a lógica hierarquizada persistia.
É possível pensar em políticas públicas ou abordagens científicas que reparem os impactos da eugenia? Há exemplos de iniciativas que caminhem nessa direção?
Passamos pela pandemia de Covid-19 durante um governo de extrema-direita. Medidas como a compra de vacinas e o lockdown foram implementadas à revelia do governo, que insistia em manter a economia funcionando e rejeitava ações de isolamento. Essa ausência deliberada de política pública foi tratada como liberdade individual, mas, na prática, operou sob uma lógica perversa, identificada como necropolítica — termo do filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe —, onde determinadas populações, como idosos, pessoas com comorbidades e trabalhadores expostos ao vírus, foram deixadas à própria sorte. Essa omissão também expressa uma lógica eugênica, pois define quem deve viver e quem pode morrer, reproduzindo hierarquizações similares às de políticas eugenistas mais explícitas do passado. A diferença é que, antes, políticas eugenistas eram promovidas pelo Estado. No caso da pandemia, a ausência deliberada de política gera o mesmo efeito.
A defesa da chamada “imunidade de rebanho” por figuras do governo, também expressava claramente essa lógica eugênica: a ideia de que o vírus deveria se espalhar até “naturalmente” desaparecer, mesmo que isso custasse muitas vidas. Ainda que cientificamente incorreta, essa proposta já partia do princípio de que alguns morreriam para que outros sobrevivessem — também uma forma de selecionar quem vive e quem morre.
Por isso, é fundamental afirmar o Sistema Único de Saúde como uma política antieugênica. O SUS, apesar das dificuldades, representa uma defesa do direito universal à vida e à saúde, independentemente de condições econômicas ou biológicas. Combater a desigualdade é combater a eugenia, e políticas públicas universais ou focalizadas, como as voltadas à população negra historicamente excluída, devem ser reconhecidas como ações antieugênicas. O SUS é, portanto, um exemplo concreto de combate à hierarquização de grupos humanos e à lógica de exclusão.