Ainda não existiam hashtags e nem camisetas para imortalizar a passagem de celebridades pelo Rio de Janeiro quando Albert Einstein visitou a cidade, há 100 anos. De resto, a atmosfera em torno do cientista parecia com a que vemos atualmente: além da presença constante de um séquito de admiradores, a imprensa local acompanhou cada passo do autor da Teoria da Relatividade em sua passagem pela então capital federal, em maio de 1925. Para destacar as notícias relacionadas ao tema, os jornais criaram um rótulo, “Einstein no Rio”, que foi amplamente repetido ao longo da grande cobertura da viagem do físico ao Brasil.
Antes da temporada no Rio, resultado de um esforço colaborativo entre as comunidades judaica e científica, Einstein, que viajava de navio e estava a caminho de Buenos Aires, parou rapidamente por aqui, em 21 de março. A breve passagem deu o tom de como seria movimentada a cobertura jornalística e a rotina do cientista quando ele retornasse à capital federal, em 4 de maio. A revista Fon Fon, que se autointitulava um “semanário alegre, político, crítico e esfuziante”, detalhou o dia dele:
“O grande sábio contemporâneo deteve-se por pouco mais de três horas em nossa capital, para sentir, para gozar o contato desses homens de ciência, que aqui divulgam e sustentam as suas teorias”, dizia a notícia, ilustrada com fotos onde o Prêmio Nobel de Física de 1921 descia do navio Cap Polonio, de terno de brim branco, destacando-se na multidão de engravatados vestidos de preto que o aguardavam no cais. Antes mesmo de desembarcar, já fora abordado por um jornalista de O Paiz.
“O luminoso céu do Brasil resolveu o problema concebido pelo meu cérebro”
Sobre a chegada ao Rio, que ocorreu nas primeiras horas do dia, o físico escreveu em seu diário: “Céu encoberto e chuva leve, mas impressão majestosa de despenhadeiros gigantescos e bizarros. Companhia muito calorosa e agradável”. De lá, partiu para uma visita ao Jardim Botânico, que também suscitou comentário: “O mundo vegetal em geral supera os sonhos de As mil e uma noites”. Depois, seguiu para um almoço no Copacabana Palace.
Em alemão, em um papel autografado, retratado nas páginas da Fon Fon, Einstein escreveu: “Foi o luminoso céu do Brasil que se incumbiu de resolver o problema concebido pelo meu cérebro”, uma referência à expedição astronômica à cidade de Sobral, no Ceará, em 1919, que confirmou a Teoria da Relatividade, a partir de fotografias tiradas do eclipse total do sol.
Ao chegar ao Brasil, em 1925, Einstein encontrou um país onde a Teoria da Relatividade despertava o interesse de um grupo de pesquisadores e angariava apoiadores e detratores. “Além da fama de tipo folclorístico que se havia criado em torno dele, existiam pessoas que conheciam as suas teorias, que estavam interessadas na sua vinda e em ouvi-lo”, escreve Roberto Vergara Cafarelli em artigo no livro Einstein e o Brasil (UFRJ, 1995), organizado por Ildeu de Castro Moreira e Antonio Augusto Passos Videira.
No Instituto Oswaldo Cruz, o cientista visitou laboratórios e ficou extasiado com o panorama visto a partir do terraço do Pavilhão Mourisco
Em 4 de maio, ao retornar ao Rio no navio francês Valdívia, após passar mais de um mês entre a Argentina e o Uruguai, cumpriu uma agenda exaustiva, até ir embora, no dia 12. Durante esse período, Einstein conheceu o trabalho desenvolvido pela então Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz. “Visita matutina ao instituto de biologia. Anatomia patológica. Insetos transmissores de doenças. Trypanosoma no microscópio”, descreveu em seu diário a visita ao local, em 8 de maio de 1925, imortalizada na fotografia que reuniu o autor da Teoria da Relatividade e pesquisadores de Manguinhos na varanda do Pavilhão Mourisco, castelo símbolo da instituição.
Em contrapartida ao relato lacônico do cientista sobre aquela sexta-feira, típico de outras entradas dele no diário, os jornais da época revelaram pormenores da passagem do físico pelo local. Segundo a Gazeta de Notícias, o cientista, por exemplo, ficou maravilhado com a vista do alto do castelo e tomou café gelado: “Einstein, pouco depois, no alto terraço do grande edifício do Instituto, pode extasiar-se ante os esplêndidos panoramas que se lhe depararam, pelos quais logo manifestou o seu entusiasmo vivíssimo”. Durante o período em que permaneceu em Manguinhos, “palestrou cordialmente” com os técnicos da instituição, visitou o Museu Oswaldo Cruz, onde demorou “curiosamente a sua atenção”, o Museu de Anatomia Patológica, a sala de leitura e a biblioteca, onde encontrou volumes com o seu primeiro estudo sobre a Teoria da Relatividade.
Einstein chegou ao Instituto Oswaldo Cruz acompanhado por uma comitiva liderada por Carlos Chagas e Leocadio Chaves, respectivamente diretor e secretário do Instituto Oswaldo Cruz à época, e composta ainda pelos professores Getulio das Neves, Roberto Marinho, Carneiro Felippe e de Evandro Chagas, primogênito de Carlos Chagas, que estava prestes a concluir a Faculdade de Medicina e atuou como intérprete de alemão. Em Manguinhos, detalhou a Gazeta de Notícias, ele visitou ainda vários laboratórios da instituição, e apreciou “preparados”, entre os quais, o “Trypanosoma cruzi”.
Para o filósofo e historiador da ciência Antonio Augusto Passos Videira, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a viagem de Einstein ao Brasil foi uma possibilidade de colocar a questão da ciência em pauta:
“Em termos de governo, a ciência só era necessária quando acontecia uma doença grave e se movimentavam para criar condições para controlar ou debelar o problema. Ainda não havia a percepção da importância da ciência para a constituição de uma agenda política, econômica e tecnológica para o país. Ela não era vista como um fator que deveria ser incentivado para contribuir para o desenvolvimento do Brasil”, declarou Videira, autor de uma biografia sobre Henrique Morize, então diretor do Observatório Nacional, que esteve à frente da comissão brasileira na expedição astronômica a Sobral, em 1919.
Em foto no Castelo da Fiocruz, Einstein em meio a “cientistas orgulhosos”
De fato, na época da vinda do físico ao país, os cientistas contavam com uma única associação, a Sociedade Brasileira de Ciência, mais adiante Academia Brasileira de Ciências (ABC), que fora criada em 1916 e reunia um seleto e reduzido grupo de pesquisadores. Apesar disso, os cientistas brasileiros já sabiam que a ciência era necessária. “Eles se movimentaram para mostrar isso e criaram uma rádio [Fundada por um grupo de cientistas e intelectuais, em 1923, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro foi pioneira na divulgação cientifica no Brasil; o acervo sobre ela foi organizado pela Casa de Oswaldo Cruz, em parceria com a Rádio MEC]. Além disso, consideravam que a ciência precisava ser pensada junto à educação. Então, acho que trazer o Einsten era uma tentativa de colocar a ciência e toda a sua relevância e capacidade de transformação na ordem do dia”.
Sobre a visita ao Instituto Oswaldo Cruz, Videira destaca a célebre fotografia tirada por J. Pinto, de Einstein com os cientistas de Manguinhos, que integra o acervo sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “O Carlos Chagas, que está na foto, assim como os outros cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, não são bobos. Ao contrário. São pessoas que sabem o que estão fazendo, em nível internacional. Então, quando eles querem tirar uma foto com o Einstein, eles querem mostrar algo como: ‘nós sabemos o que temos’. E é interessante ver também como eles estão na foto. Na minha opinião, mostra um grupo de cientistas que tem orgulho do que faz”.
No período de permanência no Rio, durante o qual ficou hospedado no apartamento 400 do Hotel Glória, Einstein cumpriu uma agenda cheia de compromissos. Descansar, como ele queria, foi praticamente impossível. Na terça, dia 5, recebeu os diplomas de professor honorário e de doutor em filosofia da Faculdade de Filosofia e depois foi ao morro da Urca e ao Pão de Açúcar. No dia seguinte, cumprimentou o presidente Artur Bernardes (1875-1955) no Palácio do Catete, fez uma excursão ao parque da Boa Vista e seguiu para uma conferência no Clube de Engenharia.
Sobre a apresentação do físico, Cafarelli escreveu: “Já dez minutos antes, ninguém podia entrar, senão à força de cotoveladas. Um “rancho” de fotógrafos inquietos montava guarda no espaço livre entre a mesa e o quadro-negro”. Na outra conferência que realizou no Rio, na Escola Politécnica, lidou com um público mais reduzido, formado praticamente por cientistas. “Felizmente, graças às medidas tomadas, a fim de evitar a invasão do recinto por grande número de pessoas, Einstein pôde desenvolver a sua teoria em um ambiente de silêncio e de atenção e dessa maneira os cientistas brasileiros acompanharam a sua exposição”.
A programação até 12 de maio incluiu, entre outros compromissos, visita ao Museu Nacional de Ciências Naturais, na Quinta da Boa Vista, à sede da ABC, ao Hospital Nacional de Alienados, ao Observatório Nacional e à Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Participou ainda de vários outros eventos, como as recepções, oferecidas, por exemplo, pela colônia judaica e pela colônia alemã. E ainda encontrou fôlego para subir, a pé, o Pico do Papagaio, no Parque Nacional da Tijuca. Não à toa, escreveu em seu diário antes do retorno à Alemanha: “Finalmente livre, mas mais morto do que vivo”.
Em diário, o físico escreveu relatos racistas em sua temporada no Brasil
Durante o périplo pela América do Sul, o cientista fez diversas declarações pejorativas e de cunho racista em seu diário. Logo ao desembarcar, no dia 4 de maio, escreveu: “Fui apanhado pelo pessoal do hotel no porto e esperei pelos professores e judeus no cais. Todos me dão a impressão de terem sido amolecidos pelos trópicos. O europeu precisa de um estímulo metabólico mais intenso do que essa atmosfera eternamente mormacenta tem a oferecer. De que valem a beleza e a riqueza naturais nesse contexto?”
Em 7 de maio, após visita ao Museu Nacional e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), escreveu: “Índios relativamente menos numerosos. Ao meio-dia, casa do professor Castro. Um macaco, mas companhia interessante: arqueólogo russo, jornalista esperto, escritora bonitinha inteligente e meio arrogante. À tarde, Academia de Ciências. Esses camaradas são oradores fenomenais. Quando elogiam alguém, eles elogiam – com eloquência. Acredito que tal tolice e irrelevância tenha relação com o clima. Mas as pessoas não pensam assim”.
Em Os diários de viagem de Albert Einstein, lançado no ano passado pela editora Record, Ze’ev Rosenkranz, organizador da publicação, escreve sobre o cientista: “Exibe forte crença no determinismo geográfico. Isso se alinha com a noção histórica europeia de que o ambiente físico da América do Sul tinha impacto decisivo tanto nas capacidades intelectuais quanto no caráter moral da população”.
Sobre isso, Videira pondera que Einstein “não tinha muita paciência para a espécie humana” e “não gostava de “futilidades, excessos, pretensões e firulas”, características que ele identificou especialmente em sua visita a Buenos Aires e, embora em menor teor, no Brasil. “Acho que viu uma falsidade, uma certa artificialidade, e ele não gostava disso nem um pouco. Essas declarações racistas do Einstein devem ser vistas nessa perspectiva”, diz o o professor de filosofia, observando que Einstein não era um santo.
“Depois, começou a se falar que ele não foi um pai muito presente, que no primeiro casamento não foi um marido muito legal, que era mulherengo desde sempre; que era muito ambicioso. Quer dizer, tinha as suas facetas humanas, né? O racismo é indesculpável, mas nos Estados Unidos, por exemplo, ele acolheu em sua casa uma cantora negra que não pôde ser hospedada em Princeton”, pontuou, fazendo referência também ao cansaço de Einstein, após o longo tempo de viagem.