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Maconha já foi remédio no Brasil do século 19

O racismo e o desenvolvimento da farmacologia contribuíram para políticas proibicionistas que fizeram uso medicinal entrar em declínio

Karine Rodrigues

26 mar/2025

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Em um texto escrito no periódico científico BrazilMedico, em 1901, Francisco de Castro, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e referência na área de Clínica Propedêutica, indicava um preparado que continha extrato de Cannabis para cuidar de espasmos e dores da “bexiga”. Não se tratava de um uso inédito. Desde 1870, o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, trazia anúncios dos “Cigarros Índios”, um remédio pronto, com maconha na sua composição, e utilizado no tratamento da asma.  

O cenário da utilização da maconha no Brasil de mais de um século atrás é bem diferente do atual, apesar das mudanças registradas na última década. A mais recente ocorreu em novembro passado, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou o cultivo da planta, sob condições específicas. A permissão é exclusiva para pessoas jurídicas e com fins medicinais e abrange uma variedade da planta com baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC), princípio ativo com propriedades psicotrópicas da maconha. A erva segue ilegal no país. 

As mudanças representam avanços, mas também uma espécie de volta ao passado, pois entre a segunda metade do século 19 e a década de 1930, a maconha foi amplamente utilizada para fins medicinais no Brasil, aponta dissertação defendida por Saulo Carneiro no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). 

À época, o médico prescrevia a quantidade e a forma de preparação e de administração do medicamento, produzido em diversas apresentações, como extratos, pílulas ou fumada in natura em cigarros. Para adquiri-lo, bastava ir à farmácia com a receita. 

“No senso comum, a maconha sempre foi uma planta diabólica, uma droga, mas em minha pesquisa mostro que ela estava dentro dos consultórios e foi amplamente comercializada nas farmácias, enquanto era utilizada pela medicina popular e pela medicina alternativa, e, socialmente, nos candomblés, nos batuques nas rodas de samba, nas feiras. O que ocorre atualmente no Brasil, que está revendo a política de drogas e o uso e o controle da maconha, não é algo novo. Há um passado de utilização medicinal da maconha no país, que, de certa forma, foi apagado. E foi apagado pela própria medicina”, frisa o historiador, que terá a sua dissertação publicada em livro no segundo semestre deste ano, pela editora Vista Chinesa.

Propriedades calmantes, analgésicas e anti-inflamatórias 

No Brasil, parte considerável da Cannabis usada como medicamento e vendida nas farmácias era importada e chegava, em alguns casos, já manufaturada. Em sua pesquisa, o historiador localizou textos médicos que indicavam a erva para doenças como Parkinson e enxaqueca e destacava as suas propriedades calmantes, analgésicas e anti-inflamatórias nos tratamentos de doenças gastrointestinais, como enterocolites, crises do tabes e neurastenia intestinal. “Vale notar que essas receitas ou preparados químicos de marca são uma expressão do amplo emprego terapêutico do extrato de Cannabis, usado na forma magistral por inúmeros pacientes, a partir das receitas dispensadas pelos seus médicos”, escreve. 

O que ocorre atualmente no Brasil, que está revendo a política de drogas e o uso e o controle da maconha, não é algo novo. Há um passado de utilização medicinal da maconha no país, que, de certa forma, foi apagado. E foi apagado pela própria medicina

Saulo Carneiro

Historiador

Cigarro_Maconha

Analisando os debates médicos sobre o tema, Carneiro observou  a constituição de dois grupos: o coletivo clínico-farmacêutico, que reunia profissionais das duas áreas e usava a planta para fins medicinais, em consonância com a ciência produzida em outros países; e o coletivo medicina social, formado pelos que se vinculavam ao eugenismo, à psiquiatria, à higiene social, à medicina legal e à criminologia, e focavam no uso e nos efeitos da erva no comportamento dos usuários, condenavam o uso social da maconha. 

Associada aos negros, maconha era vista como símbolo de degeneração  

A rejeição à maconha medicinal por parte da medicina social, segundo o historiador, não estava relacionada aos potenciais da planta, mas ao fato de a erva ocupar um lugar de destaque na cultura dos povos diaspóricos, que a utilizavam socialmente e em seus rituais religiosos. Eles consideravam, então, que a maconha não teria potencial terapêutico por ser usada por ‘incivilizados’ e ‘degenerados’, que precisavam ser ‘domesticados’.  

“Essa ala da medicina era impregnada pelo eugenismo, pelo higienismo, pelo racismo científico, e enxergava os escravizados, as pessoas negras do pós-abolição, como uma ameaça ao projeto de nação”, diz o historiador. O viés já era evidente em 1830, quando a “lei do pito de pango”, primeira norma que regulou os usos da maconha no Brasil, estabeleceu penas diferentes para usuários livres e escravizados. Enquanto os primeiros eram multados, aos demais cabia a prisão. 

Por ter “propriedades narcóticas, hipnóticas, sedativas e calmantes”, a Cannabis entrou no rol das substâncias consideradas tóxico-dependentes, alvo de leis federais relativas aos entorpecentes instituídas ao longo da década de 1930. Apesar de ser reconhecida como um importante agente terapêutico para a medicina no Brasil, a partir de evidências científicas que comprovavam o seu potencial para tratar diversas doenças, a maconha, e aqueles que a consumiam, acabaram sendo condenados.  

Proibicionismo afetou produção científica sobre a Cannabis  

Em 1936, houve uma mudança na política das drogas no Brasil, com a criação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE). A legislação alterou a forma como as drogas e seus usuários eram “abordados, estudados, controlados e criminalizados” e transformou o controle e repressão ao uso e à comercialização de substâncias psicoativas no país, afetando o emprego medicinal e a produção científica sobre as propriedades terapêuticas da planta. O proibicionismo, enfatiza o historiador, “jogou a produção científica em um arcabouço de inércia e inatividade, que só começou a ser superado nos anos 1990”. 

Entre as motivações para as políticas proibicionistas, Carneiro cita o racismo e o desenvolvimento científico da farmacologia, que possibilitou a produção de medicamentos sintéticos, anunciados como superiores aos entorpecentes e que poderiam ser usados sem risco de gerar vício em seus usuários.  

Carneiro concluiu que os dois grupos de médicos, tanto o coletivo clínico-farmacêutico quanto o médico social “foram essenciais no declínio e na proibição do uso farmacêutico da maconha”. Ambos teriam rechaçado os usos sociais e ritualísticos da planta e buscado “dissociar a maconha da Cannabis, trazendo o que era visto como a ‘planta dos negros’ para seus domínios e estreito controle e afirmando que, desde que amparado e validado por meio de estudos científicos, seu uso terapêutico seria seguro, levando-a, portanto, do ‘crime’ para a ‘cura’ “. 

Posição do CFM é ideológica e desconsidera ciência, diz historiador 

Mês passado, o governo federal publicou portaria criando um grupo de trabalho para discutir os aspectos associados ao desenvolvimento econômico da decisão do STJ sobre cultivo de cânhamo industrial no Brasil para fins medicinais. Além disso, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) planeja um grande projeto de pesquisa sobre o cultivo da planta, mirando em medicamentos e na produção de fibra e óleos vegetais. Mas Carneiro considera que há um longo caminho pela frente.  

Segundo ele, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), assim como o Conselho Federal de Medicina (CFM), têm posições muito restritivas sobre o assunto. Responsável por definir quais substâncias os médicos podem prescrever, o CFM libera o uso da substância exclusivamente para casos de epilepsia refratária ao tratamento convencional.  

“Há pesquisas robustas sobre a eficácia para várias outras doenças, mas para o CFM não basta ter evidência científica porque a decisão deles não é pautada em ciência. É uma decisão ideológica e política. Sinto que, em relação à maconha, essas evidências científicas não valem de muita coisa quando se tem essa perspectiva ideológica e proibicionista até dentro da própria medicina”, avalia o historiador. 

Em 2014, a utilização do canabidiol (CBD), um dos derivados da maconha, ocorreu pela primeira vez no Brasil, após decisão judicial para permitiu que uma família importasse óleos com a substância para tratar as convulsões da filha, refratárias ao tratamento convencional. No ano seguinte, a Anvisa removeu o CBD da lista de substâncias proibidas e regulamentou o seu uso medicinal. Em 2019, veio a autorização para comercialização em farmácias. “Sem essas famílias, não teria havido avanços”, diz o historiador. 

Carneiro finaliza observando que a maconha não deve ser vista como panaceia e nem sob o viés do preconceito e do estigma. E considera que a pesquisa em história das ciências e da saúde pode trazer novos elementos para as discussões e contribuir para o debate público sobre o tema. 

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