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O que está por trás do movimento filosófico que é contra a reprodução humana

Estudo de historiadores da Casa mostra expansão do ideário antinatalista, um tipo de pessimismo reprodutivo que mobiliza acadêmicos e ativistas

Karine Rodrigues

16 dez/2024

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Em uma comunidade formada por brasileiros na plataforma online Reddit, o compartilhamento de uma matéria sobre o antinatalismo, movimento filosófico que argumenta contra a procriação humana, suscita uma discussão acalorada, com dissensos, controvérsias e mal-entendidos.

Um ativo usuário escreve: “Uma coisa é não querer ter filhos pq (sic) não quer essa responsabilidade/experiência (meu caso). Outra é abrir mão de algo que pode ser sonho de muitos pq o capitalismo é máquina de moer gente. Se o capitalismo impede que as crianças vivam, que se mate o capitalismo, não as crianças”. Outro internauta esclarece: “Nda (sic) a ver com o capitalismo, é uma visão ética e filosófica”. Já um terceiro afirma ser antinatalista desde que passou a morar sozinho e percebeu a quantidade de lixo que produzia: “O ser humano é o mal desse mundo. Não vou colocar outro poluidor nesse planeta”. E alguém alerta para não se confundir antinatalismo com eugenia, o movimento que pregava o “melhoramento da raça humana por meio de práticas como a esterilização: “Impressionante a falta de distinção”.

O assunto ocupa plataformas online e redes sociais, como o tradicional Facebook, onde há dezenas de grupos e páginas sobre o movimento antinatalista. Além espaço virtual, a discussão mobiliza a academia, especialmente a filosofia, destacam os historiadores Gabriel Lopes e Jorge Tibilletti em estudo recém-publicado na Resgate – Revista Interdisciplinar de Cultura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No texto, os autores fazem um breve histórico dos principais marcos do movimento e exploram os sentidos históricos de fim dos tempos em um cenário pessimista contemporâneo, que se expressam no ideário antinatalista em suas formulações filosóficas, criação de comunidades online e ativismos.

Apesar de ser constituído por perspectivas diferenciadas, as abordagens antinatalistas mais desenvolvidas teoricamente argumentam, em resumo, que “a existência da espécie humana seria tanto um mal para si mesma quanto para os outros seres existentes no planeta”. Trazer novos seres humanos ao mundo seria, portanto, moralmente condenável, pois ninguém teria o direito de impor a vida à alguém sem consentimento.

Recém-saído do forno, termo ganhou explosão de popularidade nas redes

Segundo o estudo, a primeira definição formal da palavra antinatalismo em língua inglesa foi publicada no Cambridge Dictionary, no fim do ano passado e significa a “crença de que é moralmente errado ter filhos ou que as pessoas devem ser incentivadas a não ter filhos”.

O termo, que passa por “uma explosão de popularidade nas mídias sociais” e nomeia uma organização internacional criada em 2020, a Antinatalism International (ANI), teria sido introduzido pelo filósofo sul-africano David Benatar, professor da Universidade de Cape Town, na África do Sul, “para designar um valor negativo ao nascimento e demarcar uma posição antiprocriação”.

Pessimismo não é sinônimo de tristeza, assim como progresso não é sinônimo de alegria. Essa conjuntura pessimista tem que ser investigada

Gabriel Lopes

Historiador

gabriel_lopesPB

Em obra lançada em 2006, considerada fundamental na história do movimento, o pesquisador parte de uma abordagem de filosofia analítica para apresentar um estudo de assimetria entre ganhos e prejuízos do nascimento e concluir que “não nascer seria melhor que nascer”. Antes dele, outro filósofo do Sul Global, o argentino radicado no Brasil Julio Cabrera, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), já havia chamado atenção para a inexistência de um debate sobre a ética da procriação, “que deveria emergir a partir do entendimento de que a vida não possui um valor intrínseco”.

No estudo, os dois historiadores relatam que o primeiro grupo sobre antinatalismo de que se tem notícia surgiu em 2007, no Facebook, em língua inglesa. Na mesma plataforma, há, entre outros grupos, o Antinatalismo, criado em 2015, e a página Antinatalismo – Não  ter  filhos  é  um  ato  de amor, com cerca de 105 mil seguidores. No YouTube, o movimento ganhou fôlego a partir de 2010, segundo a ativista Amanda Sukenick, uma das responsáveis pela criação do The Exploring  Antinatalism  Podcast  (TEAP),  autointitulado  o  primeiro  podcast  do  mundo  dedicado  ao  tema. Com cerca de 100 episódios já lançados, reúne conversas com os principais filósofos acadêmicos e ativistas antinatalistas – recentemente, Lopes e Tibilletti foram entrevistados por ela.

Apesar de o tema ter surgido mais recentemente, o ideário antiprocriação é baseado em filosofias muito antigas e, desde o século passado, vem sendo discutido em fóruns globais sobre questões ecológicas e demografia mundial. “Ao longo do século 20, a emergência de novas tecnologias biomédicas, como os anticoncepcionais, e o entendimento científico de colapso ambiental global, atrelados ao enfraquecimento de doutrinas religiosas, podem ter contribuído para a manutenção ou continuidade dessas ideias”, escrevem os autores. Segundo eles, as  leituras  catastróficas  do  Antropoceno  também  são  compostas por temores  ambientais antigos, organizados   em uma nova dimensão   planetária, marcada, a partir de 2020, pelas ansiedades  relacionadas  à circulação global do novo coronavírus.

Interlocução sem precedentes entre acadêmicos e ativistas

No texto, eles mostram como, nos últimos quatro anos, a rígida separação entre  antinatalistas ativistas ou “reativos” e antinatalistas filosóficos ou “originários” foi cedendo, fruto de uma maior cooperação e circulação de ideias entre a produção filosófica acadêmica e a divulgação filosófica em comunidades internacionais, caracterizada pela participação de acadêmicos em podcasts, entrevistas e debates e dos ativistas na coautoria de artigos científicos. Hoje, estão em uma “interlocução sem precedentes”, avaliam. “Dessa aproximação, parece emergir uma produção acadêmica genuinamente  interessada  na  expansão  do  ativismo  e  expressão  online do antinatalismo, que também fomenta discussões públicas sobre o pessimismo reprodutivo em geral”, concluem.

Como exemplo, citam a anfitriã  do  TEAP,  Amanda Sukenick, que assinou um artigo acadêmico publicado na Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, em coautoria com o filósofo Matti Häyry. No estudo, eles abordam  a ligação entre filosofia e ativismo, frisando a necessidade de um melhor exame sobre essa relação e a reorientação de alguns conceitos no trabalho de divulgação do movimento antinatalista.

Marcado pela heterogeneidade, o antinatalismo guarda uma grande variedade de motivações. A abordagem da acadêmica australiana Patricia MacCormack, autora de The Ahumam Manifesto: activism for the end of the Anthropocene (2020), por exemplo, é uma resposta às angústias surgidas com a emergência do que muitos consideram uma nova época geológica. “No manifesto ahumano o veganismo abolicionista e a negação de procriar se configurariam como as formas básicas de combater o Antropoceno”.

“É tabu, mas o fato é que isso está acontecendo. (...) Queremos saber como uma perspectiva de futuro afeta o presente

Jorge Tibilletti

Historiador

Jorge_Tibilletti

Segundo os historiadores, aproximações ao ideário antinatalista se dão por identificação ou por adoção  de  estilos  de  vida  que  põem em xeque a reprodução  ou  decidem  ter  famílias  não  centradas  em  crianças.  Integrantes de grupos childfree, por exemplo, mantêm um diálogo cada vez mais próximo com os antinatalistas nas discussões online, mas há uma diferença considerável entre eles, pois há quem seja adepto do fim da procriação humana e apoie a adoção de crianças. Há também uma proximidade dos antinatalistas com o movimento antimaternalista, que propõe repensar o papel da mulher na procriação, uma vez que ela é reduzida à função de mãe e cuidadora.

“O Manifesto Antimaternalista da Vera Iaconelli não é antinatalista, mas certos aspectos maternalistas podem fazer uma mulher decidir por não ter filhos por conta de uma condição maternalista forte e uma condição social difícil. Decidir não ter filhos, seja por causa de uma guerra ou porque o mundo está cada vez mais poluído, são pessimismos reprodutivos. Às vezes, nem estão encaixados numa ética filosófica”, diz Lopes.

Estudo é o primeiro do Laboratório de História, Ansiedades Climáticas e Saúde

O interesse de Lopes e Tibilletti pelo tema foi despertado em razão da experiência de pesquisa que já acumulam, focada, mais especificamente, na relação entre a história das ciências, das doenças e a história ambiental. A intenção é discutir Teoria da História em articulação  com questões contemporâneas que envolvam as ansiedades climáticas e o que elas causam na sociedade nas concepções de história.

Embora considerem o assunto espinhoso, por causa das fortes pressões culturais, sociais e biológicas que cercam o assunto, ainda mais no Brasil, país onde a maternidade segue romantizada, eles destacam a importância de análises sobre a conjuntura pessimista contemporânea e antecipatória na abordagem de novos mundos possíveis. “É tabu, mas o fato é que isso está acontecendo. Então, estamos tentando investigar isso sob a luz da História das Ciências e da Teoria da História. Queremos saber como uma perspectiva de futuro afeta o presente”, explica Tibilletti.

O estudo é pioneiro no tema no Brasil e o primeiro do Laboratório de História, Ansiedades Climáticas e Saúde (LHACS), que os dois historiadores criaram. “Essa história orientada para o futuro está se voltando muito para novos mundos por habitar. E esses novos lugares podem ser um sintoma de um contexto pessimista. Muitas pessoas acham que o pessimismo vai nos botar para baixo ou nos causar uma certa imobilidade. Pessimismo não é sinônimo de tristeza, assim como progresso não é sinônimo de alegria. Essa conjuntura pessimista tem que ser investigada”, avalia Lopes.