Em plena Guerra Fria, período marcado por disputas ideológicas e geopolíticas entre os Estados Unidos e a União Soviética, o Cine Nova Iguaçu, ainda uma novidade na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, abriu as portas para uma conferência sobre a medicina soviética. Apesar do clima de repressão ao comunismo, o recinto lotou, segundo o Imprensa Popular, diário de ampla circulação vinculado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na edição de 16 de setembro de 1953. Um dos momentos de maior entusiasmo na plateia se deu quando o palestrante, José Brigagão Ferreira, relatou que, “em breve”, o Estado socialista desenvolveria uma tecnologia capaz de transplantar braços e pernas.
Médico e professor da então Universidade do Brasil, atual Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ferreira fizera parte de um grupo de médicos que, em julho daquele ano, viajara para a União Soviética, a convite do governo local, interessado em mostrar ao mundo ocidental um modo de viver e se desenvolver oposto ao ditado pelo capitalismo. Ao retornar, Ferreira passou a difundir os avanços da ciência de lá para médicos e público brasileiro em geral. Além de realizar conferências, escreveu artigos e participou de programas de rádio, abordando pesquisas e práticas em curso no Estado socialista.
A divulgação da medicina e do modelo estatal de saúde pública soviético empreendida por médicos brasileiros, como Ferreira, foi analisada pela historiadora Gabriela Alves Miranda em tese do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), orientada por Gilberto Hochman. Os impressos investigados propagandeavam “o grande experimento soviético” nos campos da medicina, da saúde pública, da ciência e da tecnologia e foram produzidos após viagens à União Soviética, nas décadas de 1930 e 1950. O intercâmbio entre saberes ocorreu sem apoio oficial do Brasil, por causa da suspensão das relações diplomáticas entre os dois países.
“Médicos brasileiros, membros do PCB ou simpatizantes do socialismo relataram em livros e artigos suas experiências na União Soviética, seu encantamento com os avanços científicos e tecnológicos, com a organização e a remuneração dos profissionais de saúde, com as instituições educacionais e de pesquisa e com os programas de saúde pública”, escreve Miranda. Segundo ela, os médicos atuaram como intelectuais mediadores, ou seja, difundiram produtos culturais para um público mais amplo, “buscando transmitir vantagens da medicina soviética em relação à medicina de países capitalistas, como sendo mais moderna, acessível, integrativa” e incorporando a ciência à cultura comunista no Brasil.
Documento-monumento da relação entre saúde e comunismo
A pesquisa de Miranda foi motivada pelo contato com o livro Rússia: notas de viagem, impressões, entrevistas, observações sobre o regime soviético, de 1931, que ela define como “um documento-monumento da relação entre saúde e comunismo”. Considerado o primeiro relato de viagem de um brasileiro à União Soviética, publicado por uma editora, o relato foi escrito por Maurício de Medeiros (1885-1968), professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e deputado federal entre 1927 e 1930, após visita a Leningrado, Moscou e Karkov. A obra se tornou um grande acontecimento do mercado editorial: em seis meses, ganhou seis edições, em um Brasil com alto índice de analfabetismo.
❝ “A admiração de intelectuais brasileiros pela URSS já existia na década de 1920, mas cresceu substancialmente nos anos 1930, quando a visão do socialismo passou a ser associada com desenvolvimento econômico, a partir da divulgação dos resultados da industrialização acelerada❞
Gabriela Alves Miranda
Historiadora

Na publicação, Medeiros, que entre 1955 e agosto de 1958 assumiria o Ministério da Saúde, expressou a empolgação com os avanços médicos e científicos na União Soviética e citou como “das mais interessantes” a legislação sobre o aborto, considerado legal desde 1920. Entre os pontos problemáticos, citou o autoritarismo e o alto grau de alcoolismo na região. Um ano após o lançamento de Rússia…, o psiquiatra Osório Thaumaturgo César (1895-1979), um dos pioneiros no uso terapêutico da arte na psiquiatria no Brasil, escreveu Onde o proletariado dirige…: visão panorâmica da URSS, livro de viagem sobre os três meses que passou no Estado socialista, em 1931, com a sua então companheira, Tarsila do Amaral (1886-1973), autora da capa e das ilustrações da publicação.
Socialismo passou a ser associado ao desenvolvimento econômico
Em meio à efervescência política nos primeiros anos do governo de Getúlio Vargas (1882-1954) e aos impactos da Crise de 1929, que deu um chacoalhão no centro do sistema capitalista, os livros de viagem chamaram a atenção do público para os progressos na União Soviética, em razão de resultados como um aumento triplo na produção e o controle do desemprego. “A admiração de intelectuais brasileiros pela URSS já existia na década de 1920, mas cresceu substancialmente nos anos 1930, quando a visão do socialismo passou a ser associada com desenvolvimento econômico, a partir da divulgação dos resultados da industrialização acelerada”, destaca Miranda.
A circulação das representações sobre o mundo soviético, porém, arrefeceu a partir de meados da década de 1930 no Brasil. Em 1935, a Lei de Segurança Nacional apertou o cerco contra publicações consideradas subversivas, e a Insurreição Comunista provocou uma reação do governo Vargas, que reprimiu pessoas, editoras, livros, jornais e gráficas. Vários estabelecimentos foram fechados à revelia. Na União Soviética, a visitação de ocidentais foi interrompida, inicialmente, por causa do recrudescimento da política de perseguição comandada por Josef Stalin (1878-1953), com prisões e execuções, entre 1936 e 1938, e, depois, pela eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Na retomada do fluxo de estrangeiros à União Soviética, o escritor Jorge Amado (1912-2001) foi um dos primeiros latino-americanos a visitar o Estado socialista no período pós-guerra, quando decidiu receber, presencialmente, o Prêmio Stálin, em 1951. Dois anos depois, integrantes da comitiva de médicos brasileiros e argentinos no Congresso Internacional de Médicos sobre as atuais condições de vida, realizado em Viena, em maio de 1953, aceitaram o convite de representantes soviéticos e seguiram de lá para a União Soviética.
A esticada ao Estado socialista rendeu dois livros: Médicos brasileiros na URSS (1955), de Milton Lobato (1921-2004) e Reinaldo Machado (1909-[?]); e A Rússia vista por um médico brasileiro (1956), de Raul Ribeiro da Silva (1898-1989). Segundo a historiadora, para os três autores, que compartilharam suas impressões também em artigos e conferências, a União Soviética se destacou no campo das inovações em soluções científicas, tecnologias médicas e ações sanitárias.
Polícia política acompanhava movimentação de médicos comunistas e simpatizantes
Todos os escritos analisados, independentemente da época, “convergiam na apresentação da modernidade soviética na ciência e medicina como um caminho alternativo ao modelo de medicina hegemônico no Brasil, fortemente influenciado pelos Estados Unidos”. A diferenciação dizia respeito à temática. Nos relatos dos anos 1930, questões sociais, como a saúde da mulher, o aborto, o divórcio e comportamentos considerados desviantes, ganharam mais destaque. Duas décadas depois, os livros de viagem e artigos se voltaram mais para a função social do médico, as condições salariais e de trabalho, o apoio estatal destinado às publicações e algumas técnicas médicas.
Toda essa movimentação era acompanhada pela política de repressão ao PCB no país. Qualquer menção à União Soviética acendia um sinal de alerta. A viagem à Viena, por exemplo, foi tratada pela polícia política do Estado do Rio como “de inspiração vermelha”, expressão usada em um boletim quinzenal sobre as “atividades comunistas”, de junho de 1953. Desempenhar o papel de “embaixadores da ciência soviética” em um cenário de forte anticomunismo contribuiu para que os médicos fossem alvo de represálias. Maurício de Medeiros foi demitido da Faculdade de Medicina; Osório César amargou meses na prisão e Milton Lobato perdeu o cargo de médico do Instituto dos Bancários.
Além dos livros de viagem, alguns desses médicos produziram artigos para a revista Atualidades Médicas e Biológicas, veiculada no Imprensa Popular, de 1951 a 1960. Miranda avalia que a revista integrou um projeto político de divulgação científica da medicina soviética com dimensões transnacionais e sugere que a publicação estava “intimamente ligada ao projeto da dogmatização da doutrina” do fisiologista Ivan Pavlov (1849-1936) “como autoridade suprema na medicina soviética”. Ganhador do Prêmio Nobel de 1904, ele considerava a atividade do córtex cerebral central para a regulação do organismo e entendia o meio ambiente como elemento importante no processo saúde-doença. A partir dessa doutrina, cientistas russos desenvolveram técnicas como a do “parto sem dor” e a terapia do sono prolongado, indicada para tratamento de enfermidades de fundo emocional e determinadas patologias mentais.
Para legitimar os relatos e afastar a acusação de atuação ideológica, os médicos destacavam que os livros de viagem eram fruto de “observação in loco, portanto verdadeiros”. Já os artigos publicados em jornais e na revista seriam “resultantes de pesquisa científica”. Sobre a questão da neutralidade científica, a historiadora pontua que os autores citados na tese, ao fazerem narrativas de viagem e desenvolverem uma revista voltada para divulgar a medicina soviética no Brasil, estavam se posicionando sobre o que entendiam como saúde pública, num período extremamente complexo.
Embora o sistema de saúde pública soviético estivesse ancorado em princípios como financiamento estatal e direito universal e levasse em conta as relações entre doença e problemas sociais, não se pode dizer, segundo a historiadora, que o SUS surgiu da experiência soviética:
“Esses médicos empreenderam um trabalho de propaganda e de divulgação como um projeto político. Pode-se falar em inspiração, mas não dá para dizer que essas ideias estão diretamente relacionadas com a formação do SUS. Havia, então, um caldo fervoroso de ideias sobre o que é medicina socialista e o que é medicina socializada. No debate, existiam outros modelos, como o de bem-estar social, da Inglaterra”.
Por fim, Miranda frisa a necessidade de estudos como o dela para o campo da História das Ciências e da Saúde. “Existe um movimento na historiografia que ainda está tímido, de prestar atenção nessas referências vindas do socialismo e analisar como elas circularam e como elas se acomodaram com as ideias do modelo capitalista”.