No ano anterior ao golpe que instaurou, em 1937, o Estado Novo, regime de exceção sob o comando de Getúlio Vargas (1882-1954), uma médica judia-alemã, Adelheid Lucy Koch (1896-1980), desembarcou em São Paulo com a família. Fugia da crescente perseguição dos nazistas na Alemanha, mas não chegou ao país às cegas. Apoiada pela Associação Psicanalítica Internacional (IPA), ela tinha rumo certo: seria responsável por dar os primeiros passos para uma nova profissão no país, pois faria o treinamento dos primeiros futuros analistas brasileiros, algo inédito na América Latina.
“Os psicanalistas que vieram da Europa para ocupar a função de analistas de treinamento e, assim, permitir a fundação [da psicanálise no Brasil] tiveram suas migrações forçadas por eventos relacionados à ascensão ou à derrubada do nazismo. Ou tomaram parte em conflitos no Brasil nos quais as reverberações nazistas parecem ter desempenhado um papel relevante (apesar de não terem sido explicitados)”, diz o estudo que integra o recém-lançado livro The Routledge International Handbook of Psychoanalysis and Jewish Studies.
Escrito por Cristiana Facchinetti, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da mesma instituição, e por Belinda Mandelbaum, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), o capítulo narra momentos fundadores das sociedades psicanalíticas no Brasil e destaca o silenciamento das referidas instituições sobre temas relevantes no contexto da época, marcado pela guerra, o nazismo o racismo e a ditadura.
Em São Paulo, judia-alemã refugiada analisa brasileira neta de escravizados
A primeira formação em psicanálise no Brasil, passo fundamental para a criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), iniciou com o encontro de duas mulheres inseridas em contextos culturais muito diversos. De um lado, Koch, a psicanalista, branca, judia-alemã, neófita nos costumes e na língua portuguesa; de outro, a paciente em análise, Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), neta de africanos escravizados, que logo se tornaria socióloga e defenderia, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, dissertação pioneira sobre as relações raciais no Brasil. Porém, não há registros sobre questões relacionadas à origem da dupla ou à conjuntura histórica em suas atividades profissionais.
“Tudo parecia convergir em direção ao encontro entre Adelheid e Virgínia ter sido coberto por um véu de silêncio sobre suas origens. Ou, pelo menos, a confrontação de suas origens não se tornou um assunto em seus trabalhos psicanalíticos”, destaca o estudo, observando que “o conceito de ‘neutralidade’, baseado em um caráter supostamente apolítico da psicanálise, contribuiu para esse silenciamento”.
No entanto, a psicanálise não se dá fora do contexto pessoal e histórico, e, naquele período, em razão dos traumas sofridos na Alemanha, boa parte dos judeus optava por calar sobre suas origens, após todas as atrocidades testemunhadas na Alemanha dominada por Adolf Hitler (1889-1945), observa Facchinetti, chamando atenção ainda para o clima de insegurança que vigorava à época:
“Quando o Brasil entrou em guerra contra a Alemanha, os judeus que vieram para cá passaram muitas vezes a ser vistos com desconfiança e foram perseguidos, como se fossem espiões alemães. Então, silenciavam sobre o que podia ameaçar a sua vida no país de acolhimento. Era uma estratégia de sobrevivência. O silêncio permaneceu para as gerações seguintes, o que não quer dizer que isso não tenha tido efeitos inconscientes”, argumenta a pesquisadora do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz, uma das organizadoras do livro Refugiados e políticas de exclusão – Histórias do nazismo, Holocausto e exílio no Brasil, que está no prelo e será lançado este mês pela Editora Fiocruz.
Psiquiatra alemão que treinou psicanalistas no Rio atuava em instituição apoiada pelo governo nazista
O treinamento dos futuros analistas brasileiros no Rio de Janeiro começou no período pós-guerra, com a chegada, em 1948, do médico e psicanalista judeu Mark Burke (1900-1975). Em dezembro, desembarcaria na cidade, para atuar na mesma função, o psiquiatra e psicanalista alemão Werner Kemper (1899-1975), afiliado ao Instituto Psicanalítico de Berlim, mesma instituição onde Adelheid Lucy Koch realizara a sua formação. Diante de escolhas teóricas no campo da psicanálise e vivências pessoais igualmente diversas em relação ao nazismo, eles travaram disputas e acabaram estabelecendo dois grupos psicanalíticos distintos: Burke na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e Kemper na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ).
Burke se formara na British Society, centro de treinamento em psicanálise em Londres, e sabia bem o que era viver em uma cidade bombardeada pelos alemães. Kemper, por outro lado, não só apoiara a decisão da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) que resultara na saída dos judeus do Instituto Psicanalítico de Berlim, “em nome do bem da instituição”, como optara por trabalhar como psiquiatra e psicanalista no Instituto Göring, que absorveu o Instituto Psicanalítico de Berlim e funcionava com apoio do governo nazista. Durante esse período, Kemper passou a responder pela policlínica onde se realizava psicoterapia para a população em geral. Lá, diz o estudo, ele adotava critérios eugênicos para decidir quem poderia ou não ser atendido, e determinava para serem incluídos no grupo dos vetados “aqueles a quem a ‘eliminação’ deveria ser recomendada”.
❝ “Quando o Brasil entrou em guerra contra a Alemanha, os judeus que vieram para cá passaram muitas vezes a ser vistos com desconfiança. Então, silenciavam sobre o que podia ameaçar a sua vida no país de acolhimento. O silêncio permaneceu para as gerações seguintes, o que não quer dizer que isso não tenha tido efeitos inconscientes”❞
Cristiana Facchinetti
Pesquisadora do Depes

Quando a Alemanha perdeu a guerra e foi iniciado o processo para identificar os colaboradores do nazismo, “os que haviam permanecido na Alemanha durante a guerra e se beneficiado dessa posição, começaram a temer pela própria vida”. Kemper decidiu pedir ajuda da IPA para emigrar e chegou ao Rio no fim de 1948. “De novo, como no encontro de Adelheid e Virginia, não há registros oficiais do impacto dessas ‘diferenças pessoais’ na coexistência deles em seu campo de trabalho”, observam Mandelbaum e Facchinetti, considerando que o silêncio “foi uma solução diante do desejo coletivo de estabelecer uma sociedade psicanalítica de acordo com os moldes europeus”, estabelecido pela IPA.
Assim como Kemper, Adelheid Lucy Koch era integrante do Instituto Psicanalítico de Berlim quando decidiram que integrantes judeus deveriam renunciar para salvar a psicanálise da opressão do governo nazista. O estudo aponta a contradição a que a IPA se submeteu: de um lado, manter a instituição significou aceitar a sua nazificação e o desligamento obrigatório dos membros judeus do Instituto Psicanalítico Alemão (DPG), em 1935; por outro, a IPA trabalhou ativamente na busca por refúgio e recolocação para esses analista fora da Europa.
Na ditadura de 1964, médico torturava e fazia formação em psicanálise
As pesquisadoras trabalham com a hipótese de que o silenciamento sobre histórias de vida, origem e, em especial, a experiência do nazismo atuou “na divisão e nos conflitos entre os dois grupos” — o de Burke e o de Kemper — e foi transmitido para as novas gerações de psicanalistas do Rio de Janeiro.
“Estamos lidando aqui com as marcas do nazismo em suas trajetórias de vida, silenciadas em terras brasileiras, mas que acabaram se revelando muitos anos depois na participação e conivência de psicanalistas brasileiros com a longa ditadura civil-militar, que durou de 1964 a 1985. Essa última tese começa com a noção da transmissão intergeracional de traumas não elaborados pelo grupo fundador, que acabaram por irromper nas gerações seguintes”, argumentam as autoras, referindo-se ao fato de que, em meio à ditadura instaurada no Brasil em 1964, a SPRJ negou denúncia feita pela militante política Inês Ettienne Romeu (1942-2015), da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que fora presa na Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio, em 1971.
Segundo relatou ao jornal clandestino do Partido Comunista no país, Voz Operária, em edição de 1973, durante a detenção, ela teria sido torturada e “atendida” pelo “Doutor Cordeiro”, codinome de Amílcar Lobo Moreira da Silva (1939-1997). Naquele ano, além de estar em formação psicanalítica na SPRJ, ele atuava nos porões da ditadura como médico do Exército brasileiro, avaliando a capacidade de resistência dos presos à tortura e intervindo para reanimá-los para novas sessões.
Na época, o caso chegou à IPA, a quem a SPRJ era filiada, após uma intervenção iniciada pela psicanalista judia carioca Helena Besserman Vianna (1932-2002), que recebeu um clipping da reportagem. Diante do questionamento da IPA, o presidente e o grupo gestor da SPRJ negaram o fato, tratado como um “ataque à psicanálise”, que, segundo eles, não tinha qualquer envolvimento com os eventos políticos do país. No estudo, Mandelbaum e Facchinetti escrevem que, “para defender a si, a SPRJ voltou a acusação contra Besserman Vianna, usando métodos de investigação típicos dos regimes inquisitoriais”. Pontuam ainda que, em 1980, quando Amilcar Lobo Moreira da Silva foi finalmente excluído da formação em psicanálise pela SPRJ. os psicanalistas Eduardo Mascarenhas e Helio Pellegrino foram expulsos da mesma instituição por terem abordado “temas proibidos”, em uma entrevista ao Jornal do Brasil.
Em 1949, no primeiro encontro da IPA após o fim da Segunda Guerra Mundial, Ernest Jones (1879-1958), presidente da instituição, voltou a apelar para o “imperativo de silêncio”, como fizera em 1935, quando o conflito mundial começou. Desta vez, disse que os psicanalistas deveriam se calar diante das tensões da Guerra Fria, pois o “silêncio em relação à política seria a melhor forma de continuar a salvar a psicanálise”. Para as autoras, as instituições psicanalíticas são como famílias, “que carregam a culpa e a urgência de lembrar e trabalhar através das gerações”. No entanto, destacam a importância da memória e da elaboração, vide o caso ocorrido no Brasil, onde silêncio “paradoxalmente se tornou a base do treinamento psicanalítico” e da institucionalização da psicanálise, “trabalhando como sintoma coletivo”.